domingo, 26 de fevereiro de 2012

INFERNO: VOCÊ CONHECE?


O Mago Negro - Paul Klee


INFERNO: VOCÊ CONHECE?

Há momentos na vida em que sentimos como se estivéssemos "nas nuvens, no paraiso, no purgatório, no céu, num abismo, no topo do mundo, numa bolha cor de rosa", e tantos outros estados que descrevemos em linguagem figurada...
Dante Alighieri, e sua Divina Comédia ...

E há também "o inferno"...

Quem nunca se sentiu "no inferno" em algum momento da vida?
 Quem de nos já não passou por alguma situação infernal?
Momentos de vida que parecem ser intoleráveis, insuportáveis,
nos quais nós sentimos torturados, impotentes, enfim, "no inferno"?

Há um belo trecho de C.G. Jung no Livro Vermelho  (1) onde ele comenta o que é inferno
 a partir de um ponto de vista psicológico:

"O que você pensa da essência do inferno? 
Inferno é quando as profundezas vêm até você com tudo
o que você não é mais ou que ainda não é capaz de ser.  

Inferno é quando você não pode conseguir aquilo que você poderia.
Inferno é quando você tem que pensar e sentir e fazer tudo tudo que você sabe que você não quer.
Inferno é quando você sabe que aquilo a que você se obriga é também a sua vontade,
e que você mesmo é responsável por isto.

Inferno é quando você sabe que todas as coisas sérias que você planejou com você
são também risíveis,
que tudo delicado é também brutal,
que tudo bom é também mau,
que tudo alto é também baixo,
e que tudo prazeiroso é também vergonhoso.

Mas o inferno mais profundo
é quando você se dá conta que
o inferno é também não inferno, mas um caloroso céu e, neste sentido,
um inferno."
 (C.G. Jung - Livro Vermelho - p. 244)


Seria isto o "Inferno dos Infernos"?

Rosanna Pavesi/fevereiro 2012



(1) = O LIVRO VERMELHO, de C.G. Jung, editado por Sonu Shamdasani, traduzido para o inglês por Mark Kyburtz, John Peck e Sonu Shamdasani. Copyright 2009 Fundação das Obras de C.G. Jung. Traduzido para o português por Edgar Orth. Copyright da tradução para a língua portuguesa - Brasil - 2010 Editora Vozes Ltda.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O JOVEM E O VELHO QUE HABITAM EM NOS...

Senécio - Paul Klee

... et Puer/Puella et Senex/Domina et Puer&Senex et Puella&Domina et...
...e  Jovem e Velho/Velha e Jovem & Velho e Jovem & Velha e...

O JOVEM E O VELHO QUE HABITAM EM NOS:
VÔOS QUE LIBERTAM
RAÍZES QUE SUSTENTAM...
Os  pares Puer-Senex e Puella-Domina, são pares arquetípicos; eles pertencem às configurações arquetípicas da natureza humana, presentes e atuantes em todos nos, quer tenhamos clareza disto ou não.
Puer/Puella é o termo latim para "criança, adolescente, jovem" enquanto Senex/Domina é o termo latim para "velho/velha".

Neste contexto, queremos fazer um recorte bastante específico, desvinculado do conceito e da dinâmica dor pares Pai-Filho e Mãe-Filha.
Queremos pensar nestes pares como personificações de outro par de opostos: Juventude-Velhice.
Vistos a partir de sua polaridade essencial, eles se tornam um e o mesmo, dois lados da mesma medalha, pois não existe Puer sem Senex, nem Puella sem Domina. Eles correspondem a pressas e velocidades juvenis e a lentidões e limitações da velhice. Marcam o calendário da vida, fazem-nos sentir, com maior ou menor exatidão, nossa idade cronológica e nossa idade psicológica.

 Estão ajustando constantemente a velocidade tanto psíquica como física de nossa vida., mas não só... Metaforicamente falando, estes pares arquetípicos também podem ser vistos como personificações  de tudo que é Jovem e tudo que é Velho em nós, para além de literalizações vinculadas à idade cronológica e ao sexo. 

(M. Rothko)

o Jovem e a Jovem que habitam em nos... 

O Jovem e a Jovem em nos costumam trazer o Novo, o Desconhecido, algo que deseja fazer parte de nossa vida, algo rumo ao devir, algo que aponta para o futuro e o desconhecido...
Costumam desarrumar a casa toda, questionam, colocam em dúvida escolhas anteriores, abalam nossas certezas, querem romper, transgredir, inovar, mudar as coisas...
São impacientes, têm pressa, tudo lhe parece possível, não há limites nem impedimentos...

Talvez o Jovem e a Jovem possam ser vistos como a personificação daquele anseio atemporal, imutável, eterno em nos, rumo ao devir, ao futuro, ao desconhecido? 
Um anseio apaixonado, que arde, que nos enche de ousadia, coragem e temor ao mesmo tempo?   
 Querem experimentação e aventura, querem  transcender as leis e as tradições
São leves, aéreos, idealistas, charmosos, sedutores, sonhadores...
Elevam-nos às alturas, nos fazem sonhar, levantam o espírito...
Mostram novas possibilidades, novas tendências, novos rumos...
Como viver sem eles?
Sem eles para instigar, desassossegar, provocar, parece que a vida perde uma parte de sua graça, de sua alegria, de seu encantamento...

Na adolescência e na juventude, Puer/Puella  nos fazem sentir que  existe uma velocidade mental que torna possível aprender  o que se tem que aprender e que aparece na curiosidade de descobrir o mundo.
É uma velocidade que existe na consciência que permite fazer as múltiplas conexões que são o deleite, o enriquecimento, o inebriamento e a fantasia do adolescente e do jovem.

Seria isto que  produz a maravilha e o êxtase a partir dos quais os vôos mentais do Puer e da Puella lhes permitem fantasiar que têm "o mundo nas mãos" e faz com que vejam os homens e as mulheres de mais idade como lentos, caducos, incapazes?

Quando Puer/Puella aparecem muito polarizados e exercem dominância, são tremendamente inconscientes de Senex/ Domina, o outro polo respectivo que trazem dentro de si, tratando de invalidar o que não pertença a seu tempo e ritmo interno, o que não caia dentro do "novo" de sua fantasia.
Quanto mais veloz for sua consciência, mais lentos serão os elementos Senex/Domina que habitam seu inconsciente.
A velocidade de Puer/Puella se desenvolve  numa velocidade tal que não pode conectar-se com o aspecto gravitacional da terra, com as lentas velocidades terrenas. Para que se toque a terra, é necessário um processo de descida, planar pouco a pouco até que haja uma reconciliação com a realidade terrena.



(Rothko)

O Velho e a Velha que habitam em nos...

Senex/Domina, em nos, costumam introduzir aos poucos um estilo de vida e pensamento caracterizados por um sentido de tempo e história, de imanência, temporalidade, limites e finitude..
Quando em dominância, pode surgir certa preferência para o previsível, o conhecido, o regulamentado, a ordem, a tradição, o status quo. Questões ligadas a segurança, saúde, morte podem se  presentificar com maior intensidade. É Cronos, a passagem cronológica do tempo marcando sua presença em nos.

Podem trazer desassossego, apatia, tristeza, melancolia, saudosismo, pesares, arrependimento e certa sensação de perda, de impotência, de "nada mais resta a fazer...nada mais pode ser mudado..."
Os tons azuis, graves e pesados predominam...(having the blues, feeling blue...).

Mas falar do Velho e da Velha tão somente a partir de uma perspectiva biológica e cronológica, de velhice e senescência,  não faz juz a seu potencial.
Desde o começo o que é Velho em nos traz em seu bojo o potencial do princípio da ordem, do  significado, da reflexão, da experiência, da realização, da profundidade psicológica, se não da sabedoria...

O Velho e a Velha personificam tudo aquilo que foi atravessado pelo tempo, tocado e modificado pelo tempo sim, mas não só... O Velho e a Velha são  também o  testemunho de nosso caráter, de nossa essência suprema, de nossa humanidade. Podem trazer a doçura, a ternura, a tolerância, a disponibilidade, generatividade e o amadurecimento que pertencem à  passagem do tempo.
O Velho e a Velha também são nossas raízes, nossa ancestralidade, nossas origens, nossa marca, nossa especificidade, nosso patrimônio, nossa solidez...
Um referencial, uma fonte viva de experiências e referências, em nos, a que recorrer em momentos de dúvida, tristeza ou melancolia...
É a nossa dignidade humana, a dignidade que vemos estampada no rosto de alguns Velhos.
Envelhecer é um privilegio...

Saibamos acolher Senex/Domina em nos com alegria e generosidade, pois mesmo quando tentamos prolongar a juventude ao máximo, ela ainda é curta se comparada a uma velhice que, por sua vez, está se tornando cada vez mais longa... 


(Rothko)

Reconciliando Jovem & Velho e Jovem & Velha...

Paradoxalmente, o desejável é a reconciliação Puer-Senex e Puella-Domina em nos...
Um  estilo de consciência onde um influencia o outro,
mas sem a dominação e a unilateralidade de nenhum dos dois...
Amar tanto os vôos que libertam quanto as raízes que sustentam,
 amar aquilo que já fomos, que somos e que viremos a ser...

Psicologicamente falando, isto significa aprender a amar, respeitar e honrar tanto o Jovem como o Velho que habitam em nos: 
Senex/Domina enquanto a habilidade de ordenar e passar adiante a experiência 
Puer/Puella enquanto capacidade de permanecer abertos e receptivos ao Mistério e à Revelação...
 "festina lente" : fazer  pressa devagar...

Nos casos em que se nota uma maturidade e velhice mais plenas, observam-se o papel e a função de Puer/Puella e Senex/Domina em harmonia com as idades que se vive, tanto cronológicas como psicológicas. Ao longo da vida, as imagens de Puer-Senex e Puella/Domina, no ritmo de um relogio de areia, invertem-se e nos oferecem outra realidade vital na maturidade e na velhice: a de uma consciência lenta, lentissima, mas um inconsciente rápido e ativo que é capaz de conectar-se com a memória nele armazenada, na velocidade necessária para isso.

O futuro pertence ao Jovem, mas a memória pertence ao Velho
 Sem memória é impossível construir o futuro...

Aprender a conciliar, em qualquer idade:
 solidez & inovação
 vôos libertadores & raízes que sustentam
criação & manutenção...

Eis o desafio...



Com o respaldo de sociedades nas quais predominam perigosamente os ideais juvenis, toda a fantasia e imagética se projetam a partir do âmbito do adolescente e do jovem, desde o comer, o vestir, a estética pessoal e todo o viver. Mas sociedades em que predominam o adolescente e o jovem como ideal coletivo e individual não consideram o seu pólo terreno oposto, e quando o fazem, geralmente é de maneira destrutiva.

Como diz Oscar Wilde em um de seus aforismos, "eu já não sou jovem o suficiente para saber tudo", felizmente, acrescento eu.
Mas uma coisa se torna cada vez mais clara, em mim : 
 na atual perspectiva de uma vida cada vez mais longa, em qualquer idade precisamos tanto do Jovem como do Velho que habitam em nos para tentarmos viver da  forma mais plena, rica e harmoniosa possível toda a vida que espera por nos...

Rosanna Pavesi/Fevereiro 2012

NOTAS:
Rafael López-Pedraza, "Consciência de Fracasso", em Rafael López-Pedraza -  Ansiedade Cultural,
(São Paulo, SP - Editora Paulus, 1997)