segunda-feira, 28 de setembro de 2015

"JOSÉ" - POR CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE




JOSÉ

E agora. José?

A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou,
e agora José?
e agora você?
você que é sem nome, que zomba dos outros,
você que faz versos, que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher, está sem discurso,está sem carinho,
já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode,
a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia e tudo acabou 
e tudo fugiu e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra, sua gula e jejum,
seu instante de febre, sua biblioteca, 
sua lavra de ouro, seu terno de vidro,
sua incoerência, seu ódio - e agora?

Com a chave na mão quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar, mas o mar secou;
quer ir para Minas, Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse, se você gemesse,
se você tocasse a valsa vienense,
se você dormisse, se você cansasse, 
se você morresse...
Mas você não morre, você é duro José!

Sozinho no escuro qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua para se encostar,
sem cavalo preto que fuja ao galope,
você marcha, José!
José, para onde?

(Carlos Drummond de Andrade)


Sem título - by Rosan

Pois é...
E agora, José?
José, e agora?
José, para onde?

Rosanna Pavesi/setembro 2015


domingo, 20 de setembro de 2015

AS VIRTUDES DA CAUTELA: UM APELO AO DESPERTAR DE NOSSAS RESPOSTAS ESTÉTICAS...

                                                              O Bosque - by Rosan


AS VIRTUDES DA CAUTELA...

Trechos extraídos do belo artigo de James Hillman - com o mesmo título - publicado 
originalmente em Resurgence - n. 213- August 2002.

"(...) Ao diminuir a velocidade e questionar os meios mais evidentemente eficientes, 
a precaução incita inovações e experimentos.

Um convite a Hermes, o de mente mercurial, para testar maneiras previamente não imaginadas 
de se chegar aos mesmos fins e que estejam de acordo com esses fins. 

A necessidade causada pela cautela, na verdade, se torna a mãe da invenção...

Sou um psicólogo e, como tal, preciso oferecer um chão psicológico à cautela. 
Três tipos de fundos de cena, 
são particularmente interessantes de serem lembrados:

O primeiro é a máxima hipocrática: PRIMUM NIHIL NOCERE:

Antes de qualquer ação, ou plano de ação, antes de mais nada, considere o lado ruim antes do bom.
Considere os riscos ao invés dos benefícios.
 Aborde os piores cenários possíveis e estenda na integra a noção de "fazer mal".
É importante lembrar que toda intervenção nos modos do mundo 
sempre atrai uma sombra 
e que a Terra tem suas próprias virtudes e forças, ou seja lembrar que 
a natureza pode estar agindo de maneiras que nossa falta de precaução não nos deixa perceber.
A cautela hipocrática traz consigo um fundo de animismo antigo, 
de respeito pela dignidade e poder dos fenômenos. 
Solicita uma escuta atenta dos fenômenos...

O segundo é o daimon de Sócrates:

Em vários trechos dos escritos de Platão, Sócrates é descrito como alguém que se detém
 diante de uma ação devido à intervenção de seu daimon.
Este daimon, espírito, anjo, voz interior, gêmeo invisível, 
este "fator psíquico autônomo" (Jung), espírito cauteloso...
Segundo Sócrates, o espirito acautelador nunca diz a alguém o que fazer, 
só o que não fazer...
Ele age unicamente como cautelar e fala de maneira peculiar: 
não estatística nem cientificamente, 
mas como anedota ou superstição, sintomaticamente como augúrios, pistas e sussurros;
até mesmo através de eventos corporais como espirros, bocejos e soluços.

O terceiro é o background endêmico das sociedades ocidentalizadas em qualquer lugar,
a depressão...

A depressão, quer da psique, quer da economia, é desesperadamente
 temida nas sociedades ocidentalizadas e todas as medidas possíveis são  mobilizadas
 contra ela.
A pressão que sentimos, as drogas que tomamos, as expectativas que nutrimos 
e os ditados da expansão econômica global, 
são todas medidas anti-depressivas.

A precaução, desta perspectiva, tem pouco valor.
Sugerir cautela numa sociedade maníaca é entendido por ela somente como depressão e, 
por isso, o princípio da cautela deve ser introduzido em termos maníacos, 
como inovador, progressista, penetrante, visionário 
e benéfico em escala mundial."

Além dos backgrounds hipocrático, socrático e depressivo à psicologia da cautela, 
Hillman acrescenta um quarto pano de fundo: A Beleza.

Diz ele:
 " A Beleza pára o movimento, nos arrebata; retemos a respiração, 
ficamos surpresos ou maravilhados, espantados ou mesmo aterrorizados 
e o mesmo é verdadeiro também com relação à feitura...

A beleza recai sobre nós num relance, nos agarra e solta. O horror faz o mesmo.
A resposta estética é dada com a psique, como um daimon interno acautelador 
que nos detém,  como o humor depressivo que recusa a ação.

A beleza porém impele à ação...
Isto é, a resposta estética simples conduz ao protesto estético contra a feiura por um lado e, 
por outro, ao desejo estético de preservar, proteger e restaurar o belo,
MAS
 a beleza, bem  como  a cautela, não foi feita para ficar quieta...
A beleza só quer que nós detenhamos por um momento o insensato e insensível impulso 
para a frente afim de abrir os sentidos ao provocar a resposta estética.

Nossos narizes, assim como nossos olhos e ouvidos
 também são instrumentos políticos, protestadores.
Uma resposta estética é uma ação política...

Nos posicionar a favor de nossas respostas,
essas reverberações estéticas da verdade na alma,
pode ser o principal ato cívico do cidadão, 
a origem da cautela e do próprio princípio de precaução com seus avisos para
parar, olhar e escutar..."

(James Hillman)


Não sou uma pessoa cautelosa por natureza... muito pelo contrário...
Com o tempo, aprendi sobre os backgrounds hipocrático, socrático 
e depressivo numa sociedade maníaca..
Aliás descobri que nossa sociedade é maníaca com Hillman...
As coisas foram se clareando...

Hoje, ainda dou "grandes saltos", porém aprendi que o ditado
NÃO é " Não salte", mas SIM "Olhe antes de saltar.."

E eu olho...




Rosanna Pavesi/Setembro 2015















quarta-feira, 9 de setembro de 2015

POEMA EM LINHA RETA... POR FERNANDO PESSOA

                                                         Sem Título - by Rosan


POEMA EM LINHA RETA 


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolados os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às  criadas do hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na  vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Fernando Pessoa)


Nos últimos tempos, em diversas ocasiões, tenho me sentido ridícula...
Ou melhor, os "semideuses" têm me feito sentir ridícula...

Não abdico de ser como eu sou, mesmo que ridícula aos olhos de alguns...

Mas hoje, confesso, digo junto ao poeta

Onde é que há gente no mundo?


Rosanna Pavesi/setembro 2015