domingo, 31 de julho de 2016

A NOITE DE BERNA...

 Prenúncios - by Rosan


A NOITE DE BERNA...

"(...) É tão vasta a noite na montanha. Tão despovoada. 
A noite espanhola tem o perfume e o eco duro do sapateado da dança,
a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. 
Mas a noite de Berna tem o silêncio.

Tenta-se em vão ler para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo,
inventar um programa, frágil ponte que mal nos liga ao subitamente
improvável dia de amanhã.
Como ultrapassar essa paz que nos espreita.
Montanhas tão altas que o desespero tem pudor,
Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta:
Nenhum rumor.  Nenhum galo possível.

Como estar ao alcance desta profunda meditação do silêncio?
Desse silêncio sem lembrança de palavras.
Se és morte, como te abençoar?


Sem título - by Rosan


É um silêncio que não dorme, é insone:
imóvel mas insone e sem fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma.
Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo,
de uma cortina que se abra e 'diga' alguma coisa.
Ele é vazio e sem promessas. Como eu?


Noites Antigas - by Rosan

Se ao menos houvesse o vento. 
Vento é ira, ira é a vida. 
Mas nas noites que passei em Berna não havia vento  cada folha 
estava incrustada no galho das árvores imóveis.


O Inverno - by Rosan


Ou se fosse época  de cair neve. Que é muda mas deixa rastro -
tudo embranquece, as crianças riem brincando com os flocos,
os passos rangem e  marcam.
Isto durante o dia é tão intenso  que a noite ainda é povoada.
Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas.
Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. 


Sem título - by Rosan


O silêncio é a profunda noite secreta do mundo.
E não se pode falar do silêncio como se fala da neve:
sentiu o silêncio dessas noites?
Quem ouviu não diz.
Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele
e de adorá-lo sem palavras..."

(Clarice Lispector em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Ptazeres).


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Somente o silêncio...


Rosanna Pavesi/Julho 2016

domingo, 10 de julho de 2016

EXISTE UM SER...

                                                             
Sem titulo - by Rosan




"(...) Só que ela não queria ir de mão vazias.
E assim, como se lhe levasse uma flor,
ela escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer..."


EXISTE UM SER...


La Luna - by Rosan


"Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele,
e é.

Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem
- pois nunca morou antes em ninguém
nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - 
apesar de inteiramente selvagem
tem por isso mesmo uma doçura primeira 
de quem não tem medo: come às vezes na minha mão.


Lua Crescente - by Rosan


Seu focinho é úmido e fresco.
Eu beijo o seu focinho.

Quando eu morrer,
o cavalo preto ficará sem casa
e vai sofrer muito.
A menos que ele escolha outra casa
e que esta outra casa não tenha medo 
daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.


Lua Cheia - by Rosan


Aviso que ele não tem nome:
basta chamá-lo e se acerta com seu nome.

Ou não se acerta, mas,
uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai.


Lua Minguante - by Rosan


Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre,
ele trota sem ruídos e vai.

Aviso também que não se deve temer o seu relinchar:
a gente se engana e pensa que é a gente mesma
que está relinchando de prazer ou  de cólera,
a gente se assusta 
com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez..."



Lua Nova - by Rosan


"Ela sorriu. 
Ulisses ia gostar,
ia pensar que o cavalo era ela própria.
Era?"

(Clarice Lispector - Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres)



O livro, publicado em 1969, é uma história de amor sem histórias...
Não há enredo, tramas...

Uma mulher que tenta superar o desconhecimento de si mesma
e aprender a viver sem dor...


Rosanna Pavesi/julho 2016