segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

"A SOCIEDADE DOS SONHADORES INVOLUNTÁRIOS" BY JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


" A SOCIEDADE DOS SONHADORES INVOLUNTÁRIOS" 
José Eduardo Agualusa
(Ed. Planeta 2017)

O jornalista Daniel Benchimol sonha com pessoas que não conhece.
Moira Fernandes, artista plástica moçambicana encena e fotografa os próprios sonhos.
Hélio de Castro, neurocientista brasileiro, desenvolveu uma máquina capaz de filmar os sonhos de outras pessoas. Hossi Kaley, hoteleiro, com um passado obscuro e violento, tem uma relação com os sonhos muito diversa e ainda mais misteriosa: 
ele pode caminhar pelos sonhos alheios, ainda que não tenha consciência disso.

O livro é uma fábula política, satírica e divertida que defende a reabilitação do sonho
enquanto instrumento da consciência e da transformação.


Livro que li recentemente e que me impactou...
Transcrevo a seguir, um trecho específico e, a meu ver, bastante significativo...



Fonte: WEB




"40.

A porta do palácio estava fechada, mas nenhum soldado a defendia.
Então Hossi atravessou a parede. Cruzou-a com desenvoltura, num salto elástico e firme,
como se o destino das paredes fosse ser atravessadadas.
O presidente esperava-o, de pé, num gabinete enorme, diante de uma mesa atafulhada de papéis.
Era um homem ainda aprumado, com um porte de bailarino, não obstante ter ultrapassado os setenta anos e sofrer de uma grave doença óssea.

O Hossi e o presidente encararam-se como dois galos numa rinha, segundos antes de se lançarem um contra o outro.
- O que você quer - perguntou o presidente.
- Tudo! - respondeu Hossi.

Disse isso enquanto, com um simples gesto, rachava o presidente ao meio. Do interior do presidente irrompeu um presidente menor, mas ainda mais empertigado que o anterior:

- Por quê?  - perguntou o pequeno presidente.
- O senhor roubou-nos o país.

- Ninguém rouba o que é seu - contestou o pequeno presidente. - Somos todos angolanos.
- Somos sim, mas o que estava combinado era que as riquezas da nação seriam utilizadas em proveito geral. Você destruiu o futuro dos nossos filhos. Destruiu o nosso sonho. Diga a verdade.

- Que verdade?
- Por que prendeu os revus?
- São terroristas.

Com o mesmo gesto simples, Hossi rachou o pequeno presidente ao meio.
Logo um outro homenzinho, mínimo, que mal chegava aos joelhos do antigo guerrilheiro, emergiu do interior do pequeno presidente..

- Por que prendeu os revus? - insistiu Hossi.
- São perigosos - disse o mínimo presidente. A voz tremia-lhe. - Você viveu a guerra. Esses miúdos não. Eles não conhecem o horror da guerra. Estão a atear incêndios. A dividir a sociedade.Mandei-os prender porque não quero uma nova guerra.


Fonte: WEB

Hossi rachou o mínimo presidente ao meio. O que surgiu em seu lugar era um ser ínfimo, assustado, com uma minúscula voz de cana rachada. 

- Pare! - implorou o ínfimo presidente. - O que você quer?
- Diga a verdade. Por que prendeu os revus?

O ínfimo presidente rendeu-se:
- Eles não têm medo! Esses miudos não têm medo! Onde já se viu?! São malucos, não mostram medo, e isso é uma doença contagiosa.
- Isso, o senhor que dizer, a coragem?
- São malucos. Você não percebe que são malucos? Se os solto vão contagiar toda a gente. Vão destruir-me, a mim e à minha família. Vão destruir tudo aquilo que nós construímos.Não os posso soltar.

Hossi pisou o ínfimo presidente,  esmagando-o.

Pessoas começaram a atravessar as paredes: jovens com batuques; velhos carregando enxadas e catanas; mecânicos, com os macacões sujos de óleo; rapazes mucubais, com crinas de zebra na cabeça. Meninos descalços, quimbandeiros, soldados, estudantes pescadores. E também catorzinhas, quitandeiras, peixeiras, zungueiras, kinguilas, as antiquíssimas bessanganas, dobradas ao peso da idade; mamãs grávidas, com um filho às costas e outro pela mão; cozinheiras, lavadeiras e babás.



Fonte: WEB


Todas aquelas pessoas ficaram ali, no imenso gabinete presidencial, girando como peixes num aquário; comtemplando, com redondos  olhos de assombro, as telas nas paredes e os armários de portas abertas, dentro dos quais se podiam ver milhares de bustos do presidente, em ouro e prata; as cabeças empalhadas dos antigos fracionistas e inimigos do povo, desaparecidos havia tanto anos; boiões de vidro cheios de pequenos corações aflitos, ainda vivos e palpitantes e, ao lado, globos de cristal em que flutuavam, num céu tão azul quanto o da minha infância nos dias felizes, as brincadeiras por estrear das catorzinhas e dos meninos descalços.

- Está tudo aqui - disse uma das bessanganas apontando ao redor.
- Todos os dias que nos roubaram.

Começou a chorar.
Chorava e ria.
Aquela bessangana éramos todos nós".


Fonte: WEB


Segundo Mia Couto, "Agualusa é um tradutor de sonhos e seu livro é um 
romance tecido com os mais delicados materiais da poesia...".


Vale conferir...


Rosanna Pavesi/ - fevereiro 2020